Ney Matogrosso achava improvável que o povo brasileiro elegesse um presidente elogioso à ditadura e crítico de minorias como Jair Bolsonaro (PSL). "Mas agora que isso aconteceu, é o seguinte: ele ganhou democraticamente", diz o artista, que declarou voto em Ciro Gomes (PDT) no primeiro turno, sobre o presidente eleito. "Não votei nele, mas desejo que acalme seu coração e faça um bom governo." Questionado sobre como se sente diante da retórica do político, que deu declarações homofóbicas, ele diz que não tem medo. "Estou, sim, prestando atenção a todos os movimentos, mas é muito recente para tirar conclusões. E tem mais: eles am, eles vão ar. É natural a qualquer governo." Após décadas de franqueza, de encontro a certo recato de seus contemporâneos na MPB, Ney, 77, não recua diante de temas controversos, como política, religião, arte e sexo. Este último foi assunto frequente desde que tomou o Brasil com sua figura andrógina -ele prefere "híbrida"- à frente do Secos & Molhados. Após chocar a tradicional família brasileira -e encantar suas crianças, que viam nele um super-herói maquiado, sem malícia, como revê no livro-, como é chegar a 2018 em um mundo mais careta? "Não imaginava nem chegar a 2018! Mas achava que teríamos mais liberdade. Mesmo na ditadura, eu ia à praia e via aeromoças se trocarem, vestirem biquíni; não tinha choques, era algo natural. Interessante como a gente caminhou para ser livre, mas ao redor veio um conservadorismo." Para ele, os eleitores de Bolsonaro se arrependeriam caso o político concretizasse sua retórica. "São pessoas que votaram insensatamente numa hipótese, não sabem como era horrível viver em uma ditadura e não ter direito a nada." Os 45 anos de trajetória profissional e a formação pessoal que os precederam são revistos em "Ney Matogrosso - Vira-Lata de Raça", que chega às livrarias em novembro. "Não é uma biografia, mas um livro de memórias, na primeira pessoa do singular." Ney diz que a obra nasceu da proposta de transcrever as principais entrevistas que concedeu desde 1973, quando despontou na MPB com o grupo Secos & Molhados. Mas veio a sugestão do poeta e amigo Ramon Nunes Mello de basear o livro em relatos. A partir dali, rememoraram por um ano a formação intelectual e artística do cantor, atravessada por teatro, música e artes visuais. Batizado com trecho de letra de uma música de Rita Lee e seu filho Beto, o livro reúne 70 fotos de diferentes épocas, além de discografia completa. Também resgata bastidores profissionais, como as experiências no teatro, no cinema e na direção, seara na qual conduziu shows de nomes como Chico Buarque e Ana Cañas. Da infância vieram os primeiros contatos com as artes, ouvindo a mãe cantar, em casa, como as divas do rádio. De uma visita com ela à Rádio Nacional, no Rio, ficou na memória contato com a cantora Elvira Pagã (1920-2003). "Fiquei pirado com aquela figura sensual em peles de onça. Penso que acabei reproduzindo essa imagem ao longo da minha carreira", escreve. Também fizeram a cabeça do infante Ney de Souza Pereira as preferências do avô argentino e da avó paraguaia, além de artistas dos anos 1950, como a atriz Martine Carol e o cantor e ator Elvis Presley. A obra é farta em intimidades, como a conflituosa relação de Ney com seu pai, um militar da Aeronáutica, à qual o próprio cantor serviu quando saiu da casa dos pais. Também há revelações surpreendentes, como um relato sobre uma possível filha. Após a saída de Bela Vista, em Mato Grosso do Sul, escreve o cantor, uma jovem procurou a mãe dele para apresentá-la a um bebê. Ney conta que sua mãe teria achado a menina muito parecida e se oferecido para ficar com ela, mas a jovem se assustou com a ideia e sumiu. Não foi a última vez em que Ney, sem filhos nem vontade de tê-los, foi confrontado com uma possível paternidade. "Ao longo da minha vida fiz três exames de DNA de pessoas que diziam ser minhas filhas. Mas deram negativo." Chama a atenção o alto nível de detalhamento das lembranças. O cantor diz que não se baseou em diários ou anotações, mas confiou na própria memória e se serviu de alguma pesquisa de Mello. A volta ao ado, segundo o artista, foi um processo tranquilo. "Eu estou acostumado a expor meu pensamento; são coisas que venho falando a vida inteira", ele diz. O livro terá lançamentos em São Paulo, no dia 8 de novembro, e no Rio, no dia 13. Depois, a ideia de Ney é se voltar à música. "Já estou com um repertório bem adiantado", ele diz, sobre um show que pretende lançar em fevereiro com canções de nomes como Milton Nascimento, Chico Buarque e Sergio Sampaio (1947-1994). Vira-Lata de Raça Autor: Ney Matogrosso. Pesquisa e organização: Ramon Nunes Mello. 5y4lu