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Rua Coronel José Dulce: Fragmentos de Memória (Parte I)
Por Acir Montecchi
20/06/2024 - 18:29

Rua Coronel José Dulce, mapa — Foto: reprodução

Por entre fotos e nomes/Os olhos cheios de coresO peito cheio de amores vãos/Eu vou/Por que não, por que não?(Caetano Veloso, Alegria, alegria) 1171a

 

Ao mundo todo, o ano de 1962, exalou os odores da Guerra Fria, a corrida espacial também exalou ruídos e odores. Essas questões, chegavam a uma parcela de moradores de Cáceres de alguma maneira. Fosse através de ondas de rádio, de jornais, de revistas como O Cruzeiro, Manchete, ou ainda, Seleções, a versão brasileira da revista mensal, norte-americana, Reader´s Digest. Os conteúdos ali propagados, às vezes animavam as conversas de calçada, ali na antiga Rua Augusta, que fora rebatizada como Rua Coronel José Dulce em 1921, homenageando um dos seus moradores mais ilustres.

É possível auscultar a Augusta de São Luiz de Cáceres, atual Coronel José Dulce, como a mais cosmopolita (no sentido eurocentrado), ou ainda, mundana (no sentido de relativa ao mundo) das ruas desta cidade. Um repositório de memória coletiva e de registros de formas de sociabilidade nas cidades. Os espaços citadinos trazem, não se pode esquecer, referenciais para a compreensão do presente, quer seja dos grupos vencedores com prevalência econômica/étnica-cultural ou de outros grupos igualmente importantes, via de regra, levados a situações de extrema vunerabilidade.

Ouve-se ainda os ecos de uma cidade que se edificou no contexto do comércio fluvial. Na paisagem da rua, os diferentes estilos arquitetônicos e usos das edificações delineiam sobretudo, os diferentes estilos de vida dos seus moradores, além do que, indicam diversidades das identidades étnicas e dos idiomas. Demonstram ter havido uma premente necessidade de comunicação, razão pela qual, realizavam-se arranjos linguísticos que ultraavam os meros sotaques, construindo estratégias de linguagens que aqui identifico como códigos facilitadores dos processos de interação.

Através das marcas esculpidas nessa rua, é possível verificar ainda que, na virada do século XIX para o XX, estavam ocorrendo mudanças, notadamente, a inserção de novos perfis na arquitetura, dando pistas de reconfiguração da paisagem citadina e dos costumes.

Vejamos nos registros imagéticos ou de memórias afetivas que também constroem imagens, a presença do Sr. Boa, acendendo os lampiões a gás ou a querosene. Os fiscais de linha cuidando dos postes e fiação do telégrafo que pontilhavam a rua. É possível visualizar o afastamento da tipologia (modo de construir) portuguesa colonial e a introdução do vigor de outros grupos que também atravessaram o Atlântico trazendo outros valores estéticos, como por exemplo, os de cidades italianas, gerando misturas nos modos de fazer ou, dito de outa maneira, novas práticas construtivas.

Sem dúvida, mudanças são legados, heranças em forma de tessituras estéticas, como já dito, trazidas de outras experiências urbanas e aqui edificadas por diferentes atores sociais. Pode-se vislumbrar na plêiade de migrantes, os D’Ambrósio, os Dulce com a casa comercial Ao Anjo da Ventura e as suas, não menos famosas, Festa di Natale. A esses, somam-se os Senatore com a elegante Confeitaria Paulista, o tino comercial de Giustti, e também, a arte construtiva do português Bixiga e do italiano Parisi.

A Rua Coronel José Dulce torna-se um microcosmo da cidade, de traçado regular muito visível e instigador, revela sintoma de todas as misturas.

Na quietude transparente da quadra inicial pouca coisa mudou, no entanto, após o Largo do antigo Paço Municipal (atualmente Biblioteca Pública), muitas edificações foram alteradas/adaptadas ao gosto e às atividades dos novos proprietários ou de moradores.

Em seu conjunto, as suas três quadras comportam a aura portuguesa de Costa Marques, de Ourives, de Maia, de Carvalho, de curvo e de Vila Ramos. Italiana de D´Ambrosio, de Dulce, de Parisi, de Montecchi. Espanhola dos Castrillon, Menacho, Garcia e Mota. Sírio-libanesa de Gattass, de Fares e Scaff Gattass. Estadunidense de Daveron, de MacLeoud, nipônica de Kishi, ou ainda, de Cavalcanti Dias.

Alexander Sólon Daveron é um nome que na atualidade tem visibilidade pública pois está, inexoravelmente, vinculado ao atual locus da cultura cacerense. O estadunidense, conheceu a região em 1931, através da Mato Grosso Expedition (expedição norteamericana de ciência e cinema vinda para a Fazenda Descalvados) e, algum tempo depois, fixou residência na rua Coronel José Dulce, número 17.

É de se notar pela concentração de pessoas de diferentes origens, em pouca extensão espacial, uma ambiência multicultural, polifônica e de convivência nem sempre pacífica, metaforicamente falando, uma espécie de Babel cacerense.

Caminhemos partir do Estádio Alfredo Dulce, (nós, os meninos do entorno, chamávamos de quintalão, atualmente Juba Supermercado – Jubinha). Na esquina do lado esquerdo, a residência Parisi. Alguns os adiante, a moradia do ex-prefeito Costa Garcia, vindo em seguida, as residências Gattass, Titão, Pinto de Arruda, em frente à casa Montecch. E voltando para o lado esquerdo da rua, a Casa do Povo (comercial Gattass), de frente ao fundo do Mercado Municipal.

O Mercado Municipal situado na antiga rua do Meio, hoje Antônio Maria, era um espaço fundamental para os ditos tropeiros. Os categorizados como tropeiros (diferentemente do que ensina a historiografia dos bandeirantes) eram populações resultantes de processos de miscigenação, de ancestralidades, moradoras de áreas não alagáveis que utilizavam animais domésticos para o transporte de seus produtos. A arquitetura interna traz a seguinte conformação, guichês laterais com um espaço central sem cobertura para proporcionar circulação de ar (possivelmente, influência do modo de edificar espanhol). São cômodos abertos aonde os morroquianos (moradores da morraria) se arranjavam, hospedavam junto aos produtos trazidos das mais diversas bocainas, estas, vãos de terras férteis entre serras ou morros, que geravam o sustento dessa população. Não era um ambiente que recebia cuidados do setor público no que se refere a salubridade. A atmosfera era carregada de odor de tabaco e retratava um modo de vida simples, com traços de sincretismos culturais.

Ao dirigir olhar para o ado histórico da Rua Augusta percebe-se a presença de indígenas e negros, de pessoas com sobrenomes invisibilizados ou sem sobrenome, resultado de diásporas, de conflitos, de contrastes, em resumo, práticas culturais que não permitiam a compreensão do outro.

Ainda que envoltas pelo casario ou os finos artigos da Casa Dulce, as narrativas precisam contemplar as diferentes referências. Reconhecer a importância, a força e a influência dos imigrantes não significa fechar os olhos para traços de convivência assimétrica e de subalternização. Existem fragmentos de um ado escravagista que ainda ecoam no tempo presente. Observo que as presenças indígena e negra coabitam nesta cidade sob esta ótica, a beleza do casario deve ser tomada como registros, enquanto artefatos são mestiços, ecléticos, resultado de labor de muitas mãos, da junção de diferentes formas de sentir as coisas do mundo.

A imagem do indígena Txá Rufa, deslocado compulsoriamente do seu povo e perambulando alcoolizado pela Coronel José Dulce e demais ruas do centro Histórico deve perar nossas memórias e exigir de nós a relevância do conhecimento histórico para nunca mais permitir tamanho desrespeito a alteridade do outro.

Do ado imperial, extraímos um recorte de jornal (10 de março, 1887) que propagava a disposição de uma moradora da Rua Augusta de São Luiz de Cáceres, em vender Benedicta, uma moça negra, de 24 anos, escravizada.

A rua é mutante, a rua também tem seu viés ante, o velho tem muito do novo e o novo tem muito do velho. Walter Benjamin me inspira, neste momento, da escrita. A novidade, às vezes, chega em forma de Charm Hotel, ou na edificação da residência de Silva, o médico ginecologista.

Ainda continuam enquanto referenciais, ao menos em minhas reminiscências, alguns marcos físicos. No limite desta primeira quadra, do lado direito, a residência Ourives de frente a glamorosa casa Ambrósio, onde ainda se destaca o encantamento proporcionado pela edificação de beleza palaciana em estilo eclético.

Igualmente glamorosa é a quadra que começa com a casa Costa Marques, do ex-presidente da província, em frente ao Paço Municipal (um dos lugares assombrados das brincadeiras da garotada). Na sequência, o Humaitá Esporte Clube, espaço dos nossos jogos de futebol de salão na antiga quadra descoberta (ali onde hoje tem uma piscina desativada e parte do ganha tempo). É doce recordar as matinés de carnaval infantil, dos bailes e os concursos de fantasia. Os bailes de debutantes eram realizados para provocar frissons. Aos que não faziam parte do circulo social só restava olhar de fora para dentro através das janelas numa prática conhecida como sapear.

Em Cáceres, de alguma maneira, tudo o que acontecia e ressoava rumo a qualquer das quatro direções, tinha como ponto de partida, o cruzamento da Travessa da Cadeia, atualmente Comandante Balduíno, com a antiga Rua Augusta.

Caminho por essa rua imerso no seu e no meu ado, inspirado por uma tonalidade afetiva e também fabulatória, própria de quem se reconhece em seu ethos. A sua beleza e esplendor não se perderam, em momentos assim, penso que o seu antigo nome, Augusta, na língua latina, tem o significado de “majestosa”, “magnífica”.

Não provocava estranhamento e nem quebrava o encanto, as nossas antigas assombrações e os nossos medos. Que pena! …as pessoas não falam mais do casal de branco que, a meia noite, saia de dentro do antigo prédio da prefeitura. O casal ficou invisível, saiu da cena urbana.

A quadra do meio e a terceira quadra, não é exagero dizer, respondiam pelas pulsações financeiras da cidade. Do ponto de vista social, a do meio era povoada por meninas e meninos que respondiam ao ouvir, Costa Marques, Kishi, Scaff, Dias, Curvo, Dulce, Pinheiro. Esses jovens, independente do uniforme escolar, tinham um ar citadino e se agregavam à cultura, aos sons da Rua José Dulce.

O fotógrafo Kishi (o pai) tinha gerador de luz, isso permitia a ele, receber a atenção dos vizinhos pois oferecia a eles o entretenimento, projetando filmes ou compartilhar o o às primeiras telenovelas.

Subia, ofegante, os degraus do belíssimo prédio de inspiração neoclássica dos correios e telégrafos (que deu lugar, até recentemente ao espaço que abrigou o Banco do Brasil), para abrir a caixa postal de número 80, da empresa comercial de secos e molhados A Ruralista, fundada por Montecchi & Giusti. Rememoro ainda, os ruídos vindos da chave manual de código morse, codificando mensagens. No guichê, uma senhora grisalha e esbelta – penso que tinha o sobrenome Villas Boas – fazia o atendimento carimbando as correspondências e vendendo selos. De posse dessas emblemáticas figurinhas, caminhava até a bancada de colagem dos envelopes e ali, embebia o pincel de goma arábica e colava selos sentido o aroma indefinido vindo do frasco de vidro.

Desse mesmo lado da rua, naqueles tempos ficava a encantadora casa comercial ao Anjo da ventura ou Casa Dulce, como os moradores a chamavam. A firma do Coronel Dulce, era preposto do Banco do Brasil. Ali se cambiava dólar, libra esterlina, peso, guarani, yen, mas também, ali, comprava-se tecidos de fina costura, baixelas em prata, perfumes, calçados, tudo conforme ditava a moda parisiense. Toda diversidade de equipamentos e ferramentas, o catálogo telegráfico do comerciante italiano, permitia comprar e colocar no porto de São Luiz de Cáceres, armas, munições, máquinas fabricadas na Bélgica, Alemanha, Inglaterra, Japão, Itália, Buenos Aires, Montevidéu, Rio de Janeiro ou São Paulo. Os comerciantes locais ali depositavam o seu faturamento.

Teve um tempo que marcadamente a Coronel José Dulce era a rua das autopeças, entretanto, não é fora de propósito a esta altura dizer que a loja que exercia sobre mim grande fascínio, gerando imagens na memória, era a agência da Empresa Aérea Cruzeiro do Sul. Uma simpática moça de sobrenome Antunes fazia o atendimento. Era impossível ar e não notar através das portas escancaradas, pendurado na parede, um em preto e branco, propagando a imagem de um moderníssimo avião Douglas DC3 contornando o Pão de Açúcar, em direção a pista do Aeroporto Santos Dumont. Mas a fase do avião, assim como do navio a vapor ou, o transporte terrestre chegou, e em frente da residência Pinheiro, o embarque aos ônibus da T.I. Baleia se instalou.

O belo prédio dos correios não existe mais, ainda assim, tenho boas recordações daquele homem negro, querido de todos, Seu Dito, o carteiro. Era recorrente perguntarmos: “Seu Dito tem carta para mim?” Ao que ele respondia: tão escrevendo…” e sorria “he, he, he”. Receber uma carta, ao menos para mim, tinha um significado simbólico infinitamente melhor do a mensagem que chega pelo whatssap.

No lugar da edificação, ficou também a lembrança da revendedora de tratores e equipamentos produzidos pela norte americana Massey Ferguson. O Restaurante Kaskata deixou recordações e registros de memória sobre a vida noturna da rua, através dos shows de artistas nacionais, a exemplo de Nelson Gonçalves, Alcione, Benito de Paula.

Pensando Cáceres como uma cidade de ritmos e talentos musicais, recordo de uma conversa no Rio de Janeiro, já em 2017, com o sambista Jorginho do Império e ele rememorando, com alegria, a sua agem pela cidade e de como o seu samba encantou os presentes em uma noite show no Kaskata Restaurante.

Pergunto sinceramente, é ou não é, uma rua cheia de rabiscos de diferentes culturas?

Nestes escritos, em que pese o meu descuido metodológico/cronológico, gostaria que notassem um tom de pertencimento, afinal, não poderia ser diferente, a Coronel José Dulce é a minha rua. Para a parte II, fica o convite, vamos juntos percorrer a terceira quadra.

Acir Fonseca Montecchi
Professor da Universidade do Estado de Mato Grosso-UNEMAT.

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